Aldeia. A tarde esvai-se entre harmonias...
Poente de oiro e de rosa, e de lilás...
Ebúrnea, a torre tange ave-marias,
Numa oração quimérica e de paz...
De sobre o monte, nesse adeus doirado,
O Sol olhou-nos com doçura estranha...
Hossana! Ele é Jesus transfigurado,
A pregar-nos do alto da Montanha!
Ele é Jesus. (Nesta hora toda em flor,
Vede o Sol e vereis Jesus presente!)
E fez-se em volta d’Ele um resplendor,
-essa auréola infinita do Poente...
E Jesus fala! E tudo O escuta: a ave,
O bosque, a rocha, o astro, a imensidade...
E a sua voz é essa luz suave
Com que o sol doira a tarde de saudade...
Voz de penumbra, o seu clarão irial
É um bálsamo de amor e mansidão,
Ungindo a natureza de Ideal,
O pó, a estrela, o verme, o coração!
E, ungida da doçura dessa luz,
Impregnada de Deus que em si resume,
Ela exala a bondade de Jesus
Como uma rosa exala o seu perfume...
E, pelo monte acima , as oliveiras
São os discípulos rodeando o Mestre...
Segue-se a multidão: as farrobeiras,
O figueiral, o freixo, o azinho agreste...
E as arvores vão sonhando um céu de amor,
Umas sem folhas outras a florir:
Estas pescadores de alma em flor,
Aquelas nus mendigos a sorrir...
Um pastor sírio (um sobro num rochedo...)
Medita, envolto em peles, torso aos nos...
E ele, que escuta lobos, ouve a medo,
O rumor de açucenas dessa voz...
E pelo vale as frescas romãzeiras,
Vermelhas e doiradas sobre a luz,
São noivas de Canà,- lindas trigueiras
Que essa voz de mistério ali conduz...
Olhai aquela macieira, além,
Carregada de pomos, em redor!
Tem os filhos ao colo, a pobre mãe...
Como os ergue nos braços, com amor!
E podre, e mutilado, num arranco
Um tronco surge, de entre os troncos sãos...
E um leproso chagadinho e manco,
Que ergue a Jesus os braços nus, sem mãos...
A terra escuta e sonha ... Uma palmeira
Sorri ao longe, em êxtase profundo!
Angelizando a Natureza inteira,
O fantasma de Cristo encanta o Mundo!
E ao sonho dessa voz (névoa de estrelas...)
Recorda o litoral ao nosso olhar,
Cafarnaum, Betsaida, e junto a elas,
O mar da Galileia o doce mar!
Lago de Tiberiades gemente,
Cor do céu como os olhos de Maria!
Dir-se-ia que em ti choram vagamente
Esses olhos azuis, ao fim do dia!
E Jesus prega: Bem-aventurados
Os simples, os humildes, os que choram!
(A terra e o céu estão ajoelhados!
E os horizontes mais e mais se enfloram...
E Jesus vai pregando! E todo o pranto
A luz do seu amor vem enxugar!
Ressoa pela tarde, como um canto,
A sua etérea voz crepuscular...
E, ouvindo os ecos dessa voz celeste,
Cala o rio as vagabundas aguas...
Voam pombas, florindo o monte agreste...
Enchem-se de luar todas as magoas...
E indica a voz do Sol, saudosa e mansa
(a voz do Rabi, toda perdão),
a cada sofrimento, um céu de esperança,
e um céu de gloria a cada escravidão!
Bernardo de Passos.
De Refugio. In o antigo livro do 5° ano dos liceus.
(Com a devida vénia).