Nô mais, Musa,
nô mais, que a Lira tenho
Destemperada e a
voz enrouquecida,
E não do canto,
mas de ver que venho
Cantar a gente
surda e endurecida.
O favor com que
mais se acende o engenho
Não no dá a
pátria, não, que está metida
No gosto da
cobiça e na rudeza
Düa austera,
apagada e vil tristeza.
E não sei por
que influxo de Destino
Não tem um ledo
orgulho e geral gosto,
Que os ânimos
levanta de contino
A ter pera
trabalhos ledo o rosto.
Por isso vós, ó
Rei, que por divino
Olhai que sois
(e vede as outras gentes)
Senhor só de
vassalos excelentes.
Olhai que ledos
vão, por várias vias,
Quais rompentes
liões e bravos touros,
Dando os corpos
a fomes e vigias,
A ferro, a fogo,
a setas e pelouros,
A quentes
regiões, a plagas frias,
A golpes de
Idolátras e de Mouros,
A perigos
incógnitos do mundo,
A naufrágios, a
pexes, ao profundo.
Por vos servir,
a tudo aparelhados ;
De vos tao longe
sempre obedientes ;
A quasiquer vossos
asperos mandados
Sem resposta,
protons e contentes.
So com saber que
sao de vos olhados,
Demonios
infernais, negros e ardentes,
Cometerao
convosco, e nao duvido
Que vencidos vos
façam nao vencidos.
Favorecei-os
logo e alegrai-os
Com a presença e
leda humanidade;
De rigorosas
leis desalivai-os,
Os mais
exprimentados levantai-os,
Se, com a
experiência, têm bondade
Pera vosso
conselho, pois que sabem
O como, o
quando, e onde as cousas cabem.
Todos favorecei
em seus ofícios,
Segundo têm das
vidas o talento;
Tenham
Religiosos exercícios
De rogarem, por
vosso regimento,
Com jejuns,
disciplina, pelos vícios
Comuns; toda
ambição terão por vento,
Que o bom
Religioso verdadeiro
Glória vã não
pretende nem dinheiro.
Os Cavaleiros
tende em muita estima,
Pois com seu
sangue intrépido e fervente
Estendem não
sòmente a Lei de cima,
Mas inda vosso
Império preminente.
Pois aqueles que
a tão remoto clima
Vos vão servir,
com passo diligente,
Dous inimigos
vencem: uns, os vivos,
E (o que é mais)
os trabalhos excessivos.
Fazei, Senhor,
que nunca os admirados
Alemães, Galos,
Ítalos e Ingleses,
Possam dizer que
são pera mandados,
Mais que pera
mandar, os Portugueses.
Tomai conselho
só d’exprimentados
Que viram largos
anos, largos meses,
Que, posto que
em cientes muito cabe.
Mais em
particular o experto sabe.
De Formião,
filósofo élégante
Vereis como
Anibal escarnecia,
Quando das artes
bélicas, diante
Dele, com larga
voz tratava e lia.
A disciplina
militar prestante
Não se aprende,
Senhor, na fantasia,
Sonhando,
imaginando ou estudando,
Senão vendo,
tratando e pelejando.
154 - Mas eu que
falo, humilde, baxo e rudo,
De vós não conhecido
nem sonhado?
Da boca dos
pequenos sei, contudo,
Que o louvor sai
às vezes acabado.
Tem me falta na
vida honesto estudo,
Com longa
experiência misturado,
Nem engenho, que
aqui vereis presente,
Cousas que
juntas se acham raramente.
155 - Pera servir-vos,
braço às armas feito,
Pera cantar-vos,
mente às Musas dada;
Só me falece ser
a vós aceito,
De quem virtude
deve ser prezada.
Se me isto o Céu
concede, e o vosso peito
Dina empresa
tomar de ser cantada,
Como a presaga
mente vaticina
Olhando a vossa
inclinação divina,
Ou fazendo que,
mais que a de Medusa,
A vista vossa
tema o monte Atlante,
Ou rompendo nos
campos de Ampelusa
Os muros de
Marrocos e Trudante,
A minha já
estimada e leda Musa
Fico que em todo
o mundo de vós cante,
De sorte que
Alexandro em vós se veja,
Sem à dita de
Aquiles ter enveja.
Luis de Camões.